Dezembro
de 1944
Deixo
esses escritos para que saibam que um dia eu existi. Deixo esses relatos para
meu filho que minha esposa carrega no ventre. Deixo essas palavras á minha
amada Hadassah e peço que me perdoe por não conseguir regressar á nossa casa.
Sou Benjamin Amzalag, filho de Judeus,
nascido nos Estados Unidos. Tenho 25 anos sou professor e militar, hoje, no
entanto sou um cativo. Capturaram-me no mês de dezembro do ano de 1944 em uma
trincheira na densa Floresta das Ardenas na Bélgica próximo as fronteiras Alemãs. Tanques, bombas e tiros eclodiam de todos os
lados. A neve que caia não conseguia cobrir os rastros de sangue que se formou
dentro e fora das trincheiras. Gritos estarrecedores de dor e agonia soam até
agora em meus ouvidos.
Estive
de joelhos, curvado, batendo continência, sendo humilhado das piores formas
possíveis. Tive o rosto desfigurado de tanto apanhar, pelo simples fato de eu
ser filho de Judeus. Um cano do rifle apontado sobre a cabeça, na dura decisão
de me entregar ou morrer lutando!
JAN/FEV-1945
Nunca acreditei em inferno, mas hoje posso
afirmar que eu estou nele. Há um mês, tive a escolha de deixar ser capturado ou
de ter o crânio despregado e ter o corpo empurrado com os pés para dentro da
vala que eu ajudei a cavar. O corpo seria queimado, imolado ao Führer. Preferi
ser capturado acreditando em um possível resgate. No estado em que me encontro,
preferia ter morrido ali. Fui covarde, minha covardia me fez conhecer o inferno
de perto!
Fizeram-me
marchar descalço sobre a neve. A sola dos pés ardia como se eu estivesse
caminhando sobre fogo. Meu corpo tremia, não tinha controle nenhum sobre ele.
Ao chegar a uma das bases alemãs, puseram-me na fila e marcaram-me no braço
como gado. Um dos soldados segurava uma tábua com um prego fincado em uma das
extremidades e com aquele instrumento rasgaram a minha pele e inseriam um
número. Não sei o que significa, (dizem que é pela religião) mas sei que não só
o meu braço como a minha alma estará marcados para sempre.
Depois
de marcados, puseram-nos em vagões de cargas e nos despacharam para o interior da
Alemanha, um espaço confinado e ali ficamos enclausurados sendo atacados pela
nossa pátria mãe. Servindo de escudo, para sermos mortos por nossos próprios
camaradas. No vagão onde eu estava tinham 80 homens, não existia espaço para
sentar ou deitar. Os tiros varavam de uma extremidade a outra sem compaixão de
quem estivesse em seu caminho. No final da linha restaram 57 sobreviventes,
convivemos dias com aqueles cadáveres que foram alvejados pelas tropas aéreas
dos Estados Unidos.
Chegamos
a base Stalag IX-B... Pediram nomes, patentes, religião e o número que estava
em nossos braços. Fui um dos selecionados e encaminhados para Berga. Os demais
que não foram selecionados acredito que tenham sido fuzilados ali mesmo.
Março/Abril
Embarcamos
para mais uma viagem. O sacolejo dos vagões sobre os trilhos tornava a viagem
desconfortável e ao mesmo tempo tranquila. A pouca luz que refletia entre as
árvores, rebatia no chão coberto de neve e passava a sensação de tranquilidade,
ouviam-se alguns pássaros. A neve fez-me lembrar de minha esposa sovando massa
de pão, quando terminava a mesa e o chão ficavam cobertos de trigo. Consigo até
sentir o cheirinho de pão fresquinho. O trem começou a desacelerar e o que
antes me passava tranquilidade, passou a me dar um calafrio no estômago.
Avistei o campo de concentração. Eles nos olhavam medonhamente curiosos e com
expressão que antes jamais poderei decifrar. Hoje eu sou um deles!
Todos
pareciam possuir uma mesma vestimenta, um pijama listrado de azul e
branco. Pessoas extremamente magras, suas
pernas e braços não possuíam mais carne. A pele era grudada no osso. Se alguém
me pedisse para definir mortos-vivos eu os definiria assim. Eu já não me considero mais um ser humano,
sou um amontoado de ossos que esqueceu de morrer.
Maio
Ouço
meus próprios piolhos, que sugam as forças que ainda me restam. Em desespero arranquei
meus cabelos fio por fio com as próprias mãos. Comi meus próprios piolhos para
me manter vivo.
Hoje
pela manhã, quatro camaradas amanheceram mortos, alguns se suicidaram
agarrando-se nas cercas eletrificadas. E os que não conseguiram acompanhar o
batalhão eram alvejados.
Esses
demônios nos querem como escravos, mas não nos alimentam, e nem nos fornecem
água. Querem nos exterminar! Trabalhamos arduamente, sem descanso
JUNHO
Quando
cheguei aqui, vi um jovem revirando fezes de cavalos e levando a boca, juro por
Deus, senti uma forte ânsia. Hoje eu revirei bosta de cavalo e levei a boca
degustando e imaginando ser a comida que a minha esposa preparava.
Hoje
ao retornamos a base encontramos 5 camaradas mortos um empilhado sob o outro.
Eles fazem questão de deixar na porta de entrada, um verdadeiro desprezo a vida
humana.
Hoje
também é o dia da nossa ‘’refeição’’. Eles nos fizeram sair e encostar sobre o
amontoado de corpos, uns até em decomposição. Encostei e fingi não ser nada.
Devorei minha comida, sem me importar. Não sou frio, apenas estou me
acostumando a ver mortes todos os dias, e aprendendo a conviver com isso. Assisto esses horrores diariamente. Todas as
noites antes de dormir abraço meus camaradas afetuosamente como se não
existisse o amanhã. Despeço-me diariamente da esperança. Na manhã seguinte,
olhos são fechados, dores e tormentos acabam ali, naquele quarto fedido, escuro
e naquele colchão coberto de micróbios e piolhos. O Espaço que antes era
confinado, começa a ganhar espaço.
Meu
Deus, quando esse tormento chegará ao fim? Mal consigo escrever, as feridas
inflamadas estão por todas as partes, Latejam e doem. O pus que escorre das
chagas, representam as lágrimas que não rolam mas dos olhos.
JULHO
O
único desejo do meu coração era ver pela ultima vez o rosto da minha amada
Hadassah e segurar o meu filho e lhe cantar uma cantiga de ninar.
Em
poucos dias não poderei mais relatar minha história. Pedi ao camarada Joseph,
que se eu morresse antes dele, ele relate como foi que eu parti...
Hoje
pela manhã, Benjamin não conseguiu levantar da sua cama. Não possuía forças,
seu corpo tremia, seus olhos pareciam de um peixe morto. Insistimos que ele
levantasse, mas ele estava com muita febre e delirava. Chamava incessantemente
por Hadassah. Um dos guardas o despiu e jogou água( quase congelada) sobre ele.
Ele debateu-se até a morte! Morreu em posição fetal! Lamento muito a sua morte,
ele foi um grande amigo.
No
dia seguinte a morte de Benjamin a tropa dos Estados Unidos invadiu a base,
prendeu os nazistas e libertou os prisioneiros.
(Esta
carta encontra-se no Museu das Vítimas do Holocausto em Washington)